DATA: 08/06/2021 - Arquivado em "Artigos"
No último dia 13 de maio o STJ, por unanimidade, negou provimento a recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em ação na qual questionava a legalidade da contratação de escritório de advocacia sem prévia licitação pela Prefeitura municipal de Porto Feliz/SP (Processo AREsp 1.426.621). A decisão, que confirmou a validade do ato, reavivou antigo debate travado no âmbito da doutrina e da jurisprudência acerca da possibilidade de contratação direta de serviços jurídicos pela Administração Pública, merecendo atenção de gestores e operadores do direito que atuam nessa seara.
Historicamente, o tema já foi alvo de entendimentos controvertidos e de interpretações extremadas, gerando incertezas que prejudicavam a segurança jurídica de atos administrativos, além de provocar vultuosa quantidade de ações judiciais promovidas com fins de perquirir a responsabilização de chefes do Poder Executivo por suposto ato de improbidade administrativa, decorrente da contratação de serviços de assessoria e consultoria jurídica mediante procedimento de inexigibilidade de licitação.
A doutrina e a jurisprudência, com base no disposto no art. 25, II, da Lei nº 8.666/93, pareciam caminhar, com certo consenso, no sentido de que tal modalidade de contratação seria possível no âmbito da Administração Pública, desde que verificado o preenchimento de dois requisitos: a singularidade do serviço e a notória especialização do contratado. Acerca do tema, vejamos excerto do voto do Ministro Luís Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento nos autos da ADC nº 45: “São constitucionais os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: (i) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (ii) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado.”
Contudo, nem mesmo essa baliza interpretativa se revelou suficiente para assegurar a necessária segurança nas contratações, de forma que os órgãos de controle passaram a questionar principalmente se a atividade que ensejou o procedimento de inexigibilidade de licitação seria, de fato, singular. O resultado, por óbvio, foi a continuidade do manejo de ações judiciais em desfavor de gestores municipais, atingindo, no mais das vezes, os próprios escritórios jurídicos contratados ou os profissionais que prestaram os serviços.
Em verdade, até mesmo o conceito de singular parece ter sido desvirtuado, na medida em que fora equivocadamente associado às ideias de raridade e exclusividade, o que, por certo, destoa do intento do legislador. Neste aspecto, o Ministro Dias Toffoli se pronunciou no sentido de que o serviço singular, para fins de aplicação das normas licitatórias, é aquele que demanda “primor técnico diferenciado, detido por pequena ou individualizada parcela de pessoas, as quais imprimem neles características diferenciadas e pessoais. Trata-se de serviço cuja especialização requer aporte subjetivo, o denominado ‘toque do especialista’, distinto de um para outro, e que o qualifica como singular, tendo em vista a inviabilidade de comparar com objetividade a técnica pessoal, a subjetividade, a particular experiência de cada qual dos ditos especialistas, falecendo a possibilidade de competição. (...) nesta hipótese os serviços enunciados no inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/93 podem ser prestados por vários especialistas; no entanto, todos eles os realizam com traço eminentemente subjetivo, em razão do que a inexigibilidade tem lugar pela falta de critérios objetivos para cotejá-los.” (Inq. 3.077/AL).
Diante da evidente necessidade de pacificar a controvérsia que há anos pairava acerca da matéria, sobreveio, em boa hora, a Lei nº 14.039/2020, que alterou o Estatuto da OAB e o Decreto-Lei nº 9.295, de 27 de maio de 1946, para dispor sobre a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade. É certo, portanto, que o principal escopo da inovação legislativa foi justamente preencher as lacunas que persistiam a respeito do tema. Nesse sentido, vejamos excerto do Parecer formulado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania acerca do PL nº 4.489/2019 (que deu origem à Lei nº 14.039/2020):
“(...) Com efeito, por não ter sido ainda pacificada a discussão sobre a inerência da singularidade aos serviços advocatícios, muitos profissionais estão sendo condenados pela pretensa prática de atos de improbidade administrativa, depois de terem celebrado contrato com entes públicos para o simples desempenho de atividades que lhes são próprias, e em hipóteses em que a licitação se afigura, por via de regra, patentemente inexigível, com fundamento na Lei nº 8.666, de 1993, art. 25, inciso II e § 2º, combinado com o art. 13, inciso V. A fim de solucionar esse imbróglio, o proponente, com argúcia, vincula em uma relação lógica de causa e efeito os atributos de tecnicidade, de singularidade e de notória especialização, já discriminados na Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o que deve fazer com que, doravante, a comprovação do último implique necessariamente o reconhecimento dos primeiros. (...)” (Grifou-se)
Da análise atenta da fundamentação acima reproduzida, parece nítido o propósito de se assentar o entendimento relativo à singularidade dos serviços advocatícios para fins de aplicação das normas inerentes à inexigibilidade de licitação. E nem poderia ser diferente, já que não se afigura razoável cogitar que a edição de uma nova Lei, em questão de há muito controvertida, simplesmente deixasse de apresentar qualquer inovação, conservando incólume o mesmo tratamento polêmico a respeito do assunto. Parece evidente, portanto, que o esforço legislativo teve o objetivo de estabelecer nova abordagem jurídica à matéria.
Vejamos o que dispõe o art. 1º da aludida Lei:
“Art. 1º A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da OAB), passa a vigorar acrescida do seguinte art. 3°-A:
‘Art. 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.’” (Grifou-se)
De logo, é possível inferir que o parágrafo único do dispositivo legal retro transcrito reproduz com exatidão a regra contida no artigo 25, §1º da Lei n° 8.666/93, com as especificidades inerentes às diferenças entre os dois institutos em consideração.
Com efeito, tem-se que a principal alteração produzida pelo legislador, constante no caput do artigo, é relativa ao aspecto objetivo da contratação, que prevê que “Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”. Destarte, da interpretação literal da norma, exsurge que os serviços de advocacia são considerados técnicos e singulares, independentemente do caso concreto, desde que comprovada a notória especialização, cujo conceito mantêm-se inalterado, em conformidade com o parágrafo único do texto legal.
A própria fundamentação utilizada pelos membros do Senado para derrubar o veto presidencial ao PL nº 4.489/2019 foi no sentido de que as peculiaridades inerentes à atividade advocatícia no âmbito da Administração Pública recomendam que a função seja exercida por profissionais que gozem da confiança do gestor público.
É bem verdade, contudo, que a confiança, dado seu elevado grau de subjetividade, não poderia constituir o único requisito a ser perquirido, mormente quando se trata de contratação realizada à custa do erário público. Contudo, para solucionar tal questão é que foi mantida a necessidade de comprovação da notória especialização.
Ademais, cumpre destacar que na justificação do projeto rememorou-se o teor do art. 133 da Constituição Federal, segundo o qual o advogado é indispensável à administração da justiça. Na mensagem, ponderou-se ainda que “para exercer tão relevante mister, com evidente múnus público, o advogado passa por um rigoroso processo seletivo, desde um curso de Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais de (...) cinco anos de academia, além de uma habilitação profissional extremamente rigorosa pelo Exame da Ordem, e, ainda, a análise da sua vida pregressa (...), para só então ser deferido o seu registro junto à Ordem dos Advogados do Brasil”. A justificação seguiu aduzindo que não haveria, assim, outra classe profissional que enfrente tamanho grau de exigência para o exercício da profissão.
Assim, desde agosto de 2020 a novel legislação já havia pretendido consolidar o entendimento de que os serviços de advocacia estão inseridos no rol dos “serviços técnicos profissionais especializados”, previstos no art. 13 da Lei n. 8.666/1993, cuja contratação pode ser realizada por meio de inexigibilidade de licitação, sendo certo, portanto, que a atividade advocatícia, quando executada por profissionais de notória especialização, reputa-se presumidamente singular.
Com efeito, considerando que a jurisprudência majoritária já caminhava no sentido de fixar como requisitos para a legalidade da contratação de escritórios de advocacia por inexigibilidade de licitação a notória especialização do profissional e a singularidade dos serviços a serem contratados, é certo que a mudança legislativa trouxe tão somente a presunção legal de que a advocacia ostenta natureza de atividade técnica e singular.
Era de se esperar, portanto, que a nebulosa celeuma em torno do tema houvesse se dissipado com a superveniência da Lei nº 14.039/2020. Todavia, a praxe forense demonstrou que os defensores da criminalização das contratações de serviços jurídicos por meio de inexigibilidade de licitação permaneceram inabaláveis no propósito de buscar a responsabilização de agentes públicos contratantes e bancas de advogados contratados.
É nesse cenário que a Lei nº 14.133, de 1 de abril de 2021, denominada de Nova Lei de Licitações e Contratos, representou um verdadeiro marco na aplicação e interpretação do instituto, tendo sepultado os fundamentos que rejeitavam a possibilidade de contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, na medida em que extirpou o requisito da singularidade do serviço para fins de inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços de assessoria jurídica ao Poder Público.
É o que se infere da leitura do art. 74, III, “e” do aludido diploma legal, que preceitua ser inexigível a licitação quando inviável a competição, nos casos de contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, como no caso de patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, atividade exercida com exclusividade pela advocacia. Veja-se:
“Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:
(...)
III - contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:
(...)
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;” (Grifou-se)
Destarte, se mesmo quando da vigência da norma anterior, a contratação direta de escritório jurídico para fins de assessoria do Poder Público já era permitida pelo ordenamento jurídico, com o advento da Lei nº 14.133/2021 a possibilidade de representação em causas judiciais ou extrajudiciais passou a ser expressamente prevista como hipótese de inexigibilidade de licitação, desde que os serviços sejam desenvolvidos com profissionais/empresas de notória especialização, sem que seja necessário perquirir acerca da eventual singularidade do serviço.
Nem mesmo a prévia existência de corpo jurídico próprio disponível nos quadros funcionais do Ente Público se revela suficiente para obstar a contratação direta. A redação do art. 74, §3º da referida Lei dispõe expressamente que qualquer serviço inerente à advocacia pode ser contratado por meio de inexigibilidade, desde que observado o requisito da notória especialização. Tal permissivo é ainda mais benéfico em municípios de pequeno porte, que no mais das vezes dispõem de um órgão de representação jurídica incipiente e desprovido de adequada estruturação.
É de se concluir, portanto, que uma vez preenchidos os requisitos impostos na Lei, a decisão de contratar, bem como a escolha do contratado mais adequado à consecução da utilidade pretendida, são questões adstritas a esfera de discricionariedade da própria Administração, que deve analisar com acuidade aspectos atinentes a estrutura administrativa, demanda do serviço, capacitação, grau de confiabilidade e de eficiência dos servidores municipais disponíveis, além de questões correlatas, sempre com vistas à garantia do interesse público.
Quando utilizado em fiel consonância com o regramento normativo vigente, observadas as peculiaridades e necessidades da Administração, o instituto da contratação direta de serviços inerentes à advocacia constitui instrumento capaz de fortalecer a Administração Pública, além de favorecer o desenvolvimento e a eficiência dos serviços disponibilizados. Atento a esses benéficos efeitos, o legislador cuidou de consolidar, de forma clara, expressa e inequívoca, o entendimento acerca da possibilidade de contratação de tais serviços por meio do procedimento de inexigibilidade de licitação, conferindo aos gestores e operadores do direito a necessária segurança jurídica na interpretação e aplicação do tema, evitando, por conseguinte, exegeses imprecisas e desarrazoadas, que em nada contribuem com a consecução das finalidades públicas que se busca alcançar.
Maceió/AL, maio de 2021.
Pontes, Marinho e Vasconcellos Advogados – Departamento Público.